domingo, 22 de março de 2009

Morrer na véspera

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Mal conhecemos a pessoa e, passado o primeiro encontro vis-à-vis, já nos outorgamos o direito sobre a vida dela. Tremendo engano. Esquecemos que não somos propriedade de ninguém senão de nós mesmos. E que todos temos um passado. Ignorância seria — com o perdão do trocadilho — ignorar esse fato e pensar que o objeto de nosso desejo tenha de estar inteiramente disponível para o nosso deleite.

No entanto, desprezamos os conselhos de amigos, as diretrizes paternas, as instruções dos manuais da conquista e falhamos nesse intento. Parece que temos um pendor natural para o sofrimento. Fazemos tudo ao contrário. Parece que buscamos elementos que justifiquem a nossa dor, o nosso desespero, a nossa angústia. Carência?

Por que as pessoas mexem com a gente, quando estamos quietinhos em nosso canto, e nos enchem de sonhos, cores, expectativas — para depois nos deixar no vácuo? Sei que o que tenho com o André é algo incipiente e sujeito às mudanças de desejo e humor, mas eu faço planos e já tenho vontade de reencontrá-lo. Por que as pessoas relativizam as coisas? Será que eu exagero na dose?

“O amor começa por uma metáfora”, escreve Milan Kundera no romance que considero seu chef-d’œuvre: A insustentável leveza do ser. Podemos até deixar uma impressão poética no primeiro encontro, mas será que estamos imunes ao mata-embrião, aquele impulso que interroga o amor, avalia-o, investiga-o, examina-o? Kundera desconfia de que todas essas perguntas que ocupam espaço na cabeça dos seres apaixonados ameaçam destruir o amor no seu próprio embrião. Por vezes me sinto inábil para gostar de novo: sem frescuras, sem dúvidas, sem cobranças. “Se somos incapazes de amar, talvez seja porque desejamos ser amados (...) em vez de chegar a ele [o amor] sem reivindicações, desejando apenas sua simples presença”, arremata Kundera.

Certa feita, escrevi que a amizade é a tradução do amor sem o componente da cobrança, sem a carga da dívida de compromisso e sem o aniquilamento das vontades individuais. Poderia o amor entre dois amantes ser assim: leve? Poderia o amor entre duas pessoas assemelhar-se ao “amor desinteressado” de Teresa por Karenin, sua cadela de estimação? “Teresa aceitou Karenin tal qual é, não procurou torná-la sua imagem, aceitou de saída seu universo de cachorra, não desejou confiscar nada dela, não sente ciúmes de suas tendências secretas. Se a educou, não foi para mudá-la (...), mas apenas para ensinar-lhe uma linguagem elementar que lhes facilitasse a convivência e a compreensão.”

Linguagens e traduções. Quem define a paixão? Quem traduz o amor? Não quero bebericar o amor; quero amar em grandes goles. Não quero amar a conta-gotas, não quero o amor gotejante, em doses homeopáticas. Quero amor que afoga, quero amor em grandes goles. Exageros.

Como diria uma sábia amiga minha, “exageros são característica de quem vive com fervor e paixão”. Ela acredita que é preferível sofrer, amar, chorar e sorrir a passar pela vida sem cicatrizes. Afinal, quem pode nos julgar por termos essa intensidade? Minha amiga conclui: “é melhor sentir essa dor do que ser indiferente ao amor”. Parece que de nada adiantou ler A insustentável leveza do ser. Continuo pesado.

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2 comentários:

  1. Não deves te sentir pesado. Deves sentir que um outro ser habita em teu coração, confortavelmente. nada de pressão, cobrança. Isso não é amor, isso é posse.
    O amor nos alivia, nos faz ver omundo cor-de-rosa, nos faz sentir donos do Univedrso.
    Não te deixes enganar.
    Se ele pesa, não é amor.

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  2. Refinado e forte, resultado de turbulências, descobertas literárias e vivências muito reais. Perfeito. Do calabouço da minha profusão antipalavra, uma abraço fraterno e admiração pululante. Andréia Dieter.

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