sábado, 21 de março de 2009

O direito ao grito

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Sexta-feira. Estava pronto para mais um dia de trabalho. Tomou seu café, foi escovar os dentes, deu um beijinho em cada filha e na mulher, afagou o cachorro e desejou bom dia à empregada. O sol surgia resplandecente através dos caixilhos da janela da cozinha. Era uma casa muito bem decorada, construída com muito esforço após anos de casamento. Um verdadeiro lar. Sólido. Da porta, sua mulher gritava tenha um bom dia, amor!
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Ele entrou no carro, largou displicentemente sua pasta no banco de trás, enfiou a chave na ignição, ligou o rádio, sintonizou a Itapema, sua estação predileta, e arrancou. Não podia se atrasar, tinha que chegar no horário, havia uma consulta agendada. Meu cliente deve estar impaciente, pensou. Há semanas que eles tinham combinado de se encontrar. Ao mesmo tempo, lembrava, hoje é nosso aniversário de casamento, meu e de minha mulher. Ligou para a secretária, faça o favor de comprar um presente para minha esposa, pode ser um conjunto novo de lingerie, ela adora lingerie. Tudo bem, doutor, sua prestativa secretária respondeu.

Estacionou seu carro, tomou novamente sua pasta cheia de papéis, relatórios, processos e contratos. Tinha muito que fazer hoje. Se ao menos eu pudesse me mandar para a Serra e só voltar mês que vem, devaneou. Botou seus pensamentos nos eixos, enquanto chaveava seu Peugeot 307, ano 2005. É um ótimo carro, este. Saiu do estacionamento, subiu pelo elevador até o 4º andar e deu de cara com o porteiro. Bom dia, doutor. Ah, como vai, seu Zé? Está o maior sol lá fora, espero que não chova neste final de semana, eu li aqui no jornal — o homem baixou os olhos — que até pode ficar mais frio. O senhor viu isso? Mas ele já havia entrado.

Mal cumprimentou o pessoal do escritório, apenas perguntou se o Alberto já chegou? Ainda não, ele falou que vai se atrasar. Saco! pensou. A gente tem tão pouco tempo... Tratou de pedir um café e sentou-se à mesa. Ligou seu laptop, abriu o editor de texto e começou a digitar. Parou. Apontou uns lápis, espalhando aparas por toda a escrivaninha, pegou umas canetas e começou aquele incessante movimento de abrir/fechar, impaciente. Seu olhar estava perdido mais à frente, numa expressão quase letárgica.

Com licença, entrou. Você chegou tão cedo, não acha? O advogado voltou a si: Nossa, eu nem percebi você entrando. Os dois sentiam saudades um do outro. Alberto argumentou que o trânsito estava pesado, deu engarrafamento ali na Borges, parece que todo mundo resolveu sair de casa hoje. Eles se aproximaram. Sente-se, disse. A secretária interrompeu-os, aqui está seu café, Dr. Fernando. Obrigado. Agora, se você puder me dar licença, a porta se fechou num estalido leve. Fernando trancou-a: Assim está melhor. Alberto levantou-se, chegou mais perto, tomou seu advogado pela cintura, seus olhares se encontraram a menos de meio metro e, sem nem pestanejar, seus lábios encontraram-se num libidinoso, porém nervoso, beijo. O tempo parecia congelar, os pássaros vinham cantar à janela, os girassóis e todas as flores da face da Terra queriam eclodir, desabrochar, florir, e o telefone tocou. Aquele barulho estridente, excruciante, asfixiante.

Alô, ele atendeu. Sua mulher está no outro lado da linha, passar? A esposa de Fernando avisava que as garotas tinham chegado mais cedo da escola, por que você não vem pra casa também, vamos todos almoçar pelo menos uma vez juntos. Ah, Júlia, você sabe, eu... Fernando se irritou. Àquela altura, seu amante já havia sentado numa confortável poltrona logo ao lado da prateleira de livros, códigos, leis, obras, volumes, tomos, enciclopédias e afins. Num gesto açodado, o advogado pegou as chaves do carro e sua carteira; sua pasta, nem se fala, deixou-a largada num canto qualquer, o computador ligado, as luzes acesas. E eu? indagou Alberto. Fique com meu relógio, ou apareça por aqui na segunda-feira, no mesmo horário. Mas e...

Saiu apressado. Bateu a porta de entrada do escritório, aonde é que o senhor vai? Nem se deu o trabalho de responder. A caminho do estacionamento, esqueci-me do paletó. Agora não importa. Pisou fundo no acelerador, os pneus cantando, atravessou o sinal vermelho, virou à esquerda — a placa indicava: Serra 120 km —, seguiu em frente, deparou com um engarrafamento colossal — é hoje que eu me mato —, deu marcha à ré e tomou o caminho de volta para casa. C’est la vie, ponderou.

Só percebeu quando já estava no chão. O caminhão que vinha atrás não teve como evitar: avançou contra a traseira do Peugeot. Fernando estava semi-acordado. O forte impacto do acidente lhe partira os ossos da coluna. Cada vértebra, um gemido surdo. Um som tímido ia, pouco a pouco, tomando forma, apresentando-se de maneira audível e inteligível. Ele está morto, vejam que ele não se mexe. Nossa, está ensopado de sangue, vem ver isso! Vamos rezar um pai-nosso, coitado.

Fernando realmente não se movia. Seu cérebro, porém, estava em pleno funcionamento. Aquela dor lancinante não lhe permitia articular sons e tampouco abrir os olhos. Mas que agora percebia a imensidão torpe de sua vida, isso nem ele próprio podia negar.

Então — ali deitado — teve uma retumbante felicidade interior, pois enfim nascera novamente para morrer, sair de cena. Seria melhor assim. Fernando contraiu-se, preso às ferragens do carro. Ele tinha uma reputação a zelar. Pretérito imperfeito. Um suspiro, dois. O derradeiro e implacável. Um súbito grito estertorado traduziria, de forma concisa e irretorquível, o significado de sua reles vida de aparências. Afinal, ele não gostava de finais grandiloquentes: o celular chamado está desligado ou fora da área de cobertura.
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Um comentário:

  1. Puxa vida, muito bom!
    Adorei o personagem e suas minúcias de irritação frente às pressões do dia-a-dia! Muito bem narrado, excelente!
    Nota dez!
    Só podia ser meu filho!
    beijos, te amo!

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